Felicidade Infrutífera

Este artigo está relacionado com a busca incessante de felicidade que atormenta muitas pessoas. A perseguição desta quimera parece estar a tornar-se cada vez mais imperativa para algumas. Às vezes, um exemplo do que aconteceu com outra pessoa pode ser uma boa ajuda para aumentar a cautela. Mais ainda se esse outro é uma figura pública que, aparentemente, não precisaria procurar muito mais bem-estar na sua vida.

A ideia de o escrever surgiu com a vitória de Djokovic, em Wimbledon, no passado fim de semana. É bem sabido que este tenista de alto nível, um dos melhores do mundo, passou uma má temporada, desmotivado e desconcentrado até que parece ter regressado ao seu melhor.

O título “felicidade infrutífera”, pode ilustrar bem esse período longo, se considerarmos o curto tempo de carreira para um tenista de alto nível. Algo parecido pode acontecer a qualquer um. Basta que se obsesione com uma busca ativa do bem-estar supremo e que tenha a infeliz ideia de se entregar nas mãos de um “guru” cujo método se baseie em prescrever doses crescentes de “amor e paz” para alcançar a “felicidade”.

Este é um exemplo mediático (devido à notoriedade do tenista) dos perigos que certos métodos entranham, mas pode servir como uma advertência para todos. O problema não está na busca da felicidade, nem da paz e muito menos do amor. O grande problema começa quando um terceiro tenta convencer um profissional de que este tipo de busca deve ser o seu principal objetivo.

Se um desportista de alto rendimento chega ao ponto de expressar em público ideias como “… precisamos estabelecer a conexão com a luz divina”, não parece que isto represente uma evolução natural e positiva na sua carreira (como exemplo, pode-se ver como o The Guardian tratou essa informação)

Evidentemente, cada um de nós tem direito a escolher os caminhos que deve seguir em cada momento da vida, mas, no caso particular de Djokovic, parece agora evidente que o seu objetivo era continuar com a sua carreira brilhante, jogar melhor que os outros e ganhar torneios. Ou alguém pensa que é possível chegar a ser o número um mundial, de outra maneira?

Sim, é possível que alguém pense isso, também com todo o direito de pensar o que entender. O que já não pode ser considerado legítimo é que exerça a sua influência para forçar que outro partilhe forçosamente a sua visão do mundo.

Neste caso, não creio que o “guru” que o assessorava tivesse más intenções. É difícil de crer que alguém tenha a intenção de, voluntariamente, complicar a carreira de um profissional de alta performance . Sendo assim, só restam duas hipóteses: ou o dito “guru” está muito confuso relativamente às prioridades da pessoa que pretende auxiliar, ou acredita realmente ter sido “iluminado”, de alguma forma, com o “dom da verdade”. Seja qual seja a hipótese que consideremos não está demais recordar a conhecida frase: “o caminho do inferno está pavimentado de boas intenções”.     

Sabendo que o desportista em causa também sofreu alguma lesão, estas considerações podem parecer demasiado arriscadas. No entanto, não estão baseadas somente nas informações das notícias que estão acessíveis para todos. Tive também a oportunidade de as ir confirmando, ao longo dos últimos dois anos, com profissionais do ténis espanhol que conhecem mais de perto as circunstâncias, a conjetura e as consequências desta infeliz colaboração profissional. Nem Boris Becker ou André Agassi, como treinadores, foram capazes de interromper este círculo vicioso que levou um jogador de alto nível a uma travessia do deserto tão grande.

Não tenho informação dos pormenores do desenlace, mas as evidências falam por si mesmas. A desaparição do “guru” do seu raio de influência, coincidiu com a recuperação da sua melhor forma  e com o regresso do seu antigo treinador Marian Vajda.

A minha motivação para escrever este post, não é, de nenhuma forma, aprofundar neste caso aproveitando as notícias e as circunstâncias. Não se trata de um caso particular nem de atacar uma pessoa em particular que, como volto a repetir, entendo que agiu com a melhor das intenções. De todas as formas, tratando-se o tenista de uma figura pública, é uma boa oportunidade para analisar um exemplo que, conforme as evidencias, contribuiu decisivamente para os seus momentos de infortúnio, a nível profissional.

 

O principal objetivo de escrever estas linhas é alertar para a infinidade de casos que se encontram com “profissionais” sem preparação, embora apliquem todas as suas boas intenções. Eles tentam inclusive orientar quem os contrata para “dar o seu melhor”. O problema é que possuem uma visão “especial” da realidade que os impele a estabelecer uma conotação “exclusiva” de “dar o seu melhor” com paz, amor e felicidade.

Nestes casos não se pode considerar que se está aplicando uma metodologia de trabalho. Passa a existir uma incursão inequívoca no âmbito da ideologia. A questão que se coloca é:

Parece legítimo exercer uma profissão de ajuda tentando incutir ideias que caracterizam fundamentalmente a forma de pensar de uma pessoa ou de um grupo?

As ideologias, fora de contexto, podem levar alguém a acreditar que a sua visão da realidade é a realidade em si mesma. Esta ilusão já é perigosa, mas torna-se ainda muito mais perigosa quanto está ligada uma ideia messiânica: quando alguém se sente obrigado a explicar e organizar o mundo de acordo com essa ideologia; deixa de importar-lhe se o “mundo” quer ou não quer ser organizado de tal forma.

Nas atividades profissionais que se orientam à resolução de problemas e à melhora da performance individual, ou coletiva, encontramo-nos frequentemente com casos muito similares ao que aqui descrevo. A diferença é que a maioria são casos anónimos, que merecem tratamento confidencial. No caso de figuras públicas que recebem toda a atenção dos media e revelam publicamente os pormenores das suas opções vitais, os seus exemplos podem e devem servir, em certos casos, como elemento de análise e reflexão sobre o que potencialmente se pode estar a passar com as pessoas “normais”.

depressaoPara não cair na auto-referência do que já venho publicando há anos, sobre os fundamentos deste tipo de situações, transcrevo e traduzo aqui um extrato de um artigo de uma colega espanhola que, por ser psicóloga clínica, se encontra com muito mais casos desta natureza:

“Muitas vezes, as expectativas tão exageradas que conseguem criar, as ilusões, como dificilmente são alcançadas, acabam gerando na pessoa uma sensação exasperante de incapacidade (“sou um inútil, desisto, é melhor terminar já”). E o que dizer quando esta sensação incapacitante é apresentada por comparação com os membros de um grupo que geralmente alcança seus objetivos. Quem não está a passar um bom momento e não chega ao nível dos demais, acaba acreditando que os outros pensam que ele é incapaz (“eu sou a anedota da empresa”).

A sequência perniciosa: ilusão, decepção, depressão”

Fonte: https://www.terapia-breve-estrategica.es/basta-ya/

Como disse antes, a ideia não era aprofundar neste caso mediático, mas deixar aqui esta alerta e umas breves considerações, desde um ponto de vista não clinico, que podem ser uteis para aqueles que se esforçam por alcançar, ou manter, um ritmo de trabalho de alta performance, em qualquer contexto: Os conceitos de “Boreout” e de “Tensão Criativa” que estão inter-relacionados:

Boreout:

boreout burnout

Para seguir com linha de análise anterior, o tenista revelou à imprensa que chegou a ter dúvidas sobre o seu interesse e compromisso, relativamente à alta competição.

O conforto e a vida familiar prevaleceram, em determinado momento. Consequentemente, nessas condições, não parece provável que tais dúvidas fossem estranhas ao seu baixo rendimento. O forte contraste entre toda uma vida de com

petição e uma situação desta natureza que diminui o seu ritmo de vida, pode transformar toda a atividade frenética que envolve a alta competição em algo profundamente aborrecido.

Este exemplo, embora atípico, pode ajudar a reforçar a tese do Boreout. Contrariamente ao Burnout, este tipo de “síndrome” baseado no aborrecimento por falta de interesse, de um certo nível de tensão, e mesmo a falta de algum stress, impede que um trabalho se possa desenvolver em níveis de alta performance.

Tensão Criativa:

Este conceito proposto por Peter Senge no livro “A quinta disciplina”, baseia-se na perspectiva da “realidade” adoptada por cada pessoa ou grupo; a sua perspectiva sobre a posição atual, relativamente ao objetivo que aspira alcançar. En certos casos pode ser util como um antidoto contra o “boreout”.

Quanto mais próxima da objetividade esteja essa perspectiva, mais adequada será a “tensão criativa” que nos empurra em direção ao objetivo. A natureza de uma tensão é procurar a sua própria resolução, mas também é importante refletir sobre as diferentes conotações do adjetivo “criativa”.tensao creativa

Podemos relacioná-lo com a capacidade de criar a tensão necessária à resolução do “gap’ entre o que queremos alcançar e o que temos atualmente. Por outro lado, também pode ser relacionado com a “criação” duma realidade que altere (positiva ou negativamente) a percepção de onde estamos. Assim podemos, de forma criativa, aumentar ou diminuir essa tensão, mudando a perspectiva.

À partida, não parece ser condenável tentar aumentar ou reduzir a “tensão criativa” a través da mudança de perspetiva, em determinadas circunstâncias e contextos. É um tema ético, discutível, que pode até justificar um amplo debate.

No entanto, o que já parece ser eticamente reprovável é alguém “crie” uma perspectiva da realidade tão abstrata que possa nublar completamente a visão de um objetivo que anteriormente estava claro, preciso e conciso.

Concluindo, prefiro continuar a pensar que, nestes casos, só se trata de “profissionais” com uma formaçao deficiente que provoca a confusão entre metodologia e ideologia.

Enfim, as boas intenções….